7 de fevereiro de 2009

A Mané
Uma noite na Casa do Alentejo, há cerca de um ano atrás, na baixa de Lisboa, esta senhora sentou-se à nossa mesa e pediu-nos do nosso vinho, a mim e ao meu amigo João. Nós oferecemos, embora a senhora mal se aguentasse em pé, mal falasse, mal tudo. Mas do pouco que se percebia daquilo que ela dizia, era poesia, ou era triste o que ela sentia. "Levem-me de vez". Sendo eu e o João feitos daquilo que somos, logo achámos aquela presença um pouco preciosa; tantas mesas por ali... e a Mané veio cair (literalmente) na nossa. Trazia 3 mochilas cheias com ela, e o nosso espanto aumentou quando ela tira de uma dessas mochila uma caixa, pousa-a na mesa, abre-a... e lá dentro existiam desenhos, textos, fotografias, folhas de àrvores... suponho que lembranças queridas da senhora pois foi nessa altura que finalmente sorriu embora nunca tivesse parado de chorar. E para nós dois, já nada mais existia naquele salão senão aquela senhora e o valor que ela dava aqueles objectos, e aquele sentimento que era lindo e ao mesmo tempo dava vontade de chorar. Mostrou-nos desenhos com casas, lagos e barcos, feitos por ela em tons de pastel... Cores lindas, lindas. Tínhamos que ser nós a encher-lhe o copo pois ela não suportava o peso do jarro.
Até que nos mostra um conjunto de folhas escritas à màquina, aparentemente um livro, um esboço de tal coisa, não sei... O João pergunta se podemos ler, ela responde que sim. Ele não leu um parágrafo, nem sequer uma página. Ele leu tudo, em voz alta, enquanto os meus cotovelos e os da Mané encontravam descanso na mesa, enquanto nos assemelhávamos a duas crianças desejosas por ouvir o fim da história. Na verdade as folhas não tinham uma história apaixonante, excertos de experiências dela talvez, apaixonante para quem lesse paixão. Eram textos que pareciam não se articular muito bem, eu de nada me lembro, só me lembro de pensar como estava bem escrito, como me apetecia continuar a ouvir aquelas vivências aquele enigma interminável. E a Mané ouvia também como se nunca tivesse ouvido, não sei se por não rever tais coisas hà muito tempo, ou se por estar outra pessoa tão privilegiadamente a ler. Suspirava aqui, chorava ali, de vez em quando sorria ou chegava mesmo a soltar uma pequena gargalhada arrastada, à medida que as folhas eram varridas. Ela ouvia provavelmente a história da vida dela... lida pela boca de um amigável desconhecido... que não simplesmente a expulsou da sua mesa... era nisto que eu pensava e sentia, sabendo que já o João, estava fascinado com aquelas folhas com as infinitas hipóteses de significados que aquilo poderia ter e ao mesmo tempo com o valor das ideias, com o valor do momento em que aquilo foi escrito, com o valor do tempo que entretanto passou, eu sei lá... ele estava fascinado, isso eu sei.
E foi assim que tornámos esta noite diferente para a Mané e para nós. E foi assim que deixámos uma marca positiva. Nem que seja nas nossas consciências, o que basta para deixar uma marca de felicidade em nós. E foi assim que também marcámos essa senhora que pouco verbalizava mas imagino que muito, muito se passasse naquela cabeça e naquele coração. Quando ela nos mostrou os desenhos em cores pastéis, eu disse-lhe que queria comprar-lhe um que adorava pois estava mesmo, mesmo bonito. Nem era apenas por serem das minhas cores favoritas, eu queria algo dela para mim, algo para manter, para deixar aquela noite acesa. Ela disse que não queria vender os desenhos. Só eu sei o que senti... o João poderá também imaginar o que foi... quando ela pega no desenho que eu tanto gostei, escreve uns rabiscos inicialmente indecifráveis nas costas do mesmo.. e mo oferece.


A resposta, a ajuda, a alegria, podem vir de onde não esperamos. E vêm. Eu sei que sempre que peço uma ajuda, um jeitinho vá lá... tenho que estar preparada para colher a resposta, tenho que estar atenta pois não posso limitar essa resposta a algo que eu gostaria que fosse... 
Sei, tenho a certeza que, a resposta é uma pessoa, um acontecimento, um sorriso de um estranho, uma frase que 'por acaso' fui ler. E digo tenho a certeza porque diariamente me deparo com situações deste nível. Vou na rua um pouco mais aborrecida, vem um cão simpático lamber-me a mão, pedir festas, sorrir e fazer-me sorrir. Ao fim e ao cabo, só me vem recordar que sou feliz e tenho tudo em mim para o ser. Eu agradeço ao cão e sigo caminho mais animada.